terça-feira, 23 de outubro de 2007

Criança, infância e família em Juiz de Fora (1850-1920)

O texto que segue é parte de um artigo no qual ainda estou trabalhando. Mas gostaria da opinião dos leitores do blog sobre ele e sobre a temática, de forma geral. No texto em questão trabalho especialmente com dois memorialistas: Nava e Áurea Nardelli. Tenho um apresso especial pelos dois e gosto da forma simples com que narram suas lembranças. Acho as memórias fontes interessantíssimas e muito ricas pois elas extrapolam a simples descrição da realidade entrando no plano da mentalidade (embora alguns historiadores não gostem muito do uso deste termo eu o acho adequado para exprimir os sentimentos de um sujeito histórico e sua interpretação da realidade na qual vive).



Ao estudar a família, as crianças aparecem geralmente como um pano de fundo dentro de um quadro mais complexo. Os estudos de gênero possuem o mérito de tirar da sobra o papel da mulher dentro da celular familiar, mas só recentemente a criança e a infância começaram a receber um pouco de atenção por parte da historiografia. A infância é, por definição, a representação que os adultos fazem do período inicial da vida. A história da infância seria, por conseguinte, a história das relações socais, culturais estabelecidas pelas crianças, além de suas relações com os adultos. Por outro lado, a história da criança seria a história das crianças entre si e com os adultos, sua relação com a cultura e a sociedade onde vivem.

Para Phillipe Àries,[1] a criança e sua ascensão dentro do núcleo familiar a responsável pela formação do sentido de família, a partir do momento em que tem início o sentido de infância. Esta transformação ocorre em parte graças à integração cada vez maior da criança à escola e o gradual abandono daquela educação apenas ligada ao trabalho e às boas maneiras, realizada muitas vezes em casas de família, longe o controle dos pais. A família para ele só passa a existir como a conhecemos no momento em que os pais tiram a criança do mundo dos adultos.

Em torno de sua obra gira o debate sobre o desenvolvimento a concepção moderna da infância. Em estudos recentes foi demonstrado que a consciência da existência de diferentes períodos da vida humana poder ser identificada desde a antiguidade, nas mais diversas e diferentes culturas. Contrariamente a Áries, há quem defenda a existência de uma percepção nítida da especificidade da infância, já na Idade Média. A criança era construída, inicialmente pelo amor ou pela rejeição dos pais. Alguns autores criticam Áries por generalizar o caso francês e não levar em conta as especificidades e o contexto de cada região.[2]

Em nosso trabalho queremos trabalhar a questão a inserção social da criança, a partir da família, seja ela de elite ou pertencente a camadas menos privilegiadas. Como fontes, para um estudo inicial temos a obra de dois memorialistas, Áurea Nardelli e Pedro Nava. Áurea Nardelli, professora, natural de Mar de Espanha relata, em seu livro de memórias[3], episódios que envolveram sua vida e a de sua família desde a infância. Suas brincadeiras infantis ao lado dos irmãos e seus momentos de peraltices e até de engajamento político, durante a adolescência mostram que os mais jovens estavam conquistando um espaço cada vez maior e mais importante dentro da organização familiar. Através de suas impressões e de sua leitura particular da realidade na qual viveu podemos compor um quadro histórico da juventude mineira – em particular juizforana - das primeiras décadas do século XX.

Nava utiliza alegorias de sua infância para narrar casos de maridos que matam brutalmente suas esposas, de madrastas que maltratam enteadas, moças que envenenam namorados que as desprezam, além de relatar suas próprias experiências, na escola e na família. Fala-nos sobre seu amor e respeito pelo pai e de sua avó Maria Luiza Jaguaribe, mulher fria e distante, que nunca deu afeto ao neto. Nava fala de si e daqueles que o rodeavam, pois acredita na força da memória como fortalecedora das tradições familiares, que ele defende, embora não feche os olhos para o outro lado da sociedade: aquele onde todas as regras são quebradas.

Áurea Nardelli nasceu no início do século XX e, aos 14 anos mudou-se para Juiz de Fora. Suas memórias, no entanto, contam com detalhes sobre a vida dos pais e dos avós, assim como elementos referentes à tradição e cultura do século XIX, passados a ela por sua mãe e avó. Seu pai era italiano e começou a trabalhar aos 13 anos, pois seu avô paterno gastava todo seu dinheiro que recebia com prostitutas ou amantes. Desde bem jovem Vicente Nardelli foi obrigada a encarar de frente as responsabilidade de um adulto, talvez por isso tenha se preocupado em dar aos filhos uma infância melhor e menos sofrida – pensamento que está presente entre os pais ainda nos nossos dias.

Os filhos eram, já naquele início de século XX, o receptáculo dos sonhos e das ambições dos pais. A escola era um caminho para a ascensão social, geralmente negado aos pobres, mas não necessariamente fechado a eles. Segundo Pierre Bourdieu, colocar um filho na escola e lhe proporcionar um diploma – excepcionalmente de doutor ou bacharel -, é como fazer um investimento para o futuro, que trará grandes lucros, econômicos ou sociais para a família. O capital cultural é, talvez, o maior investimento que um pai possa fazer em seu filho.[4]

O pai, muito preocupado com a educação dos filhos, tentou dar-lhes a melhor instrução, dentro de suas possibilidades – foram muitos filhos, quatorze ao todo, e muitas dificuldades financeiras. A família humilde, foi aos poucos melhorando sua condição social e econômica e os filhos estudaram e tornaram-se profissionais de sucesso. Áurea permaneceu solteira – escapou da interferência dos pais no casamento, pois eles praticamente diziam com quem se podia ou não casar.

Quando criança, Áurea foi criada dentro de uma rigidez religiosa que em alguns momentos contrastava com os hábitos europeus que seu pai havia herdado – como o de dar beijos. Desde pequena ajudava sua mãe nos afazeres domésticos e cuidava dos irmãos menores. Tinha o hábito de orar em diversas ocasiões – ao dormir, ao se levantar, para tirar mal olhado, ao lavar o rosto e para espantar animais. Na escola recebeu uma educação voltada pra o lar, como era de costume. Mas em suas memórias descreve momentos em que a jovem religiosa e tímida assumia postura crítica e rebelde. Seu pai envolvia-se apaixonadamente na política e, na escola, ela e suas colegas normalistas discutiam entre si as mudanças que ocorriam na República. Eram meninas-moças, e eram informadas. Ao contrário do pensamos, as mulheres, mesmo as jovens, não estavam alienadas ao que acontecia ao seu redor. Áurea se considerava uma jacobina.

Os maus tratos às crianças eram freqüentes, tanto entre os mais pobres, quanto entre as camadas médias. Eles se faziam através de castigos físicos, violência sexual, abandono, negligência e até mesmo do infanticídio. Casos envolvendo crianças não erram raros nem passavam desapercebidos. Percebe-se uma tendência a tentar preservar a criança das amarguras do mundo adulto e a buscar algum tipo de punição para crimes cometidos contra crianças.

Ao nosso escritório ontem, os diretores da escola mantida pelo Culto Católico mariano Procópio, à rua das Escolas,naquele bairro, vieram queixar-se de grande malta de moleques atrevidos, que por ocasião da saída das alunas, ali se reúnem dirigindo-lhes gracejos e frases que a decência anda calar. Aí fica a reclamação. Esperamos providências por parte da policia”.[5]

Por outro lado, também era freqüente a marginalização de meninos e meninas que viviam nas ruas, sendo taxados arbitrariamente de arruaceiros e perseguidos pela polícia e pelos jornais, que existiam sua retirada do centro da cidade, local freqüentado por boas famílias, que deveriam ser poupadas da visão da vadiagem. Crianças fugiam de casa para escapar dos maus tratos dos pais. Quando não eram encaminhadas a orfanatos, eram perseguidas sob acusação de vadiagem, vandalismo e outros pequenos delitos, sempre a elas atribuídos. Os vizinhos muitas vezes eram os canais através dos quais se chagava a pais a mães “desalmados”, que fugiam do ideal de civilidade ao desferir castigos rígidos e até desumanos aos seus filhos.

Na parte baixa da rua do Comércio existe uma preta, de nome Clementina, que tem uma criança de 5 meses, que a maltrata com tanta barbaridade que os vizinhos chamam a atenção da policia para saber a causa dessa malvadeza, que pratica diariamente e se compadecer dessa infeliz criança, porque não pode haver coração que a faça assim sofrer.”[6]

Na verdade, uma mãe que não zela e cuida de sua prole, por si só, demanda mais atenção das autoridades e da comunidade do que a violência contra a criança. Esta mulher vai contra o ideal de boa-mãe-dona-de-casa que caracteriza uma mulher civilizada, idealizada pela sociedade burguesa. A mulher é alvo de inúmeras críticas. Se não se casa, é uma solteirona e alvo de comentários jocosos e maldosos; se é abandonada ou divorciada, precisa provar que é boa mãe, boa dona de casa e mulher trabalhadora, caso contrário pode ser acusada até mesmo de meretrício.

Da mesma forma, as crianças despertam reações ambíguas. Tanto podem ser inocentes e frágeis criaturas pelas quais cabe a sociedade zelar em caso de abandono ou desamparo, como podem ser taxadas como “pestes”, pequenos marginais, criaturas capazes de atos hediondos. Os jornais noticiam regularmente a presença de moleques no centro comercial ou nos parques, causando desordem, roubando ou simplesmente incomodando os adultos com sua presença. Crianças que muitas ficam nas ruas porque os pais estão trabalhando e elas não possuem mais nada o que fazer senão aventurar-se no mundo dos adultos para aprender a sobreviver desde cedo.

Os órfãos eram citados nos jornais como criaturas abandonadas à própria sorte e explorados pelos adultos. Aliás, o trabalho dos órfãos era utilizado pelas famílias – inclusive as abastardas – e muitas vezes assumiam o papel de “crias”. Criados desde pequenos pelos seus “patrões” e recebendo em troca de seu trabalho comida e roupas – geralmente usadas. Em alguns momentos sua exploração aflorava, que em alguns casos era seguida de violência física e/ou sexual, na forma de pequenos textos nos jornais.

Tendo chegado ao conhecimento do sr. dr. Juiz substituto dessa comarca que em casa do sr. Francisco Pereira Bretas, residente á rua do Sampaio, havia uma menor órfã de nome Albertina que era constantemente seviciada, de modo bárbaro, por pessoas da casa, aquele magistrado mandou apreende-la e fê-la conduzir á sua presença, tendo-lhe tomado auto de perguntas. Em seguida mandou proceder a corpo de delito, verificando que a menor apresentava contusões. A menor foi depositada em casa do sr. Antônio da Cunha Figueiredo até deliberação última do sr. dr. Juiz de órfãos[7]

Pedro Nava relata em suas memórias a existência de “crias” na casa de sua poderosa avó, Maria Luiza Jaguaribe. Eram, em geral, negras ou mulatas, que além de fazerem os serviços domésticos, ainda serviam como “olhos” e “ouvidos” de sua patroa. Eram constantemente maltratadas e obrigadas a trabalhar cantando para que a patroa pudesse melhor ficalizá-las[8]. Nava ainda ressalta um outro aspecto deste tipo de menina/emprega: elas eram utilizadas também nos complexos sexuais dos meninos.[9]

A criança, em muitos casos, entra no mundo dos adultos muito antes do fim cronológico da infância. Muitas vezes meninos e meninas são obrigados a trabalhar para ajudar no sustento da família, cuidar da casa e dos irmãos menores e mesmo abandonando os jogos e brincadeiras infantis. Para Margareth Rago,[10] a criança, é instrumento de intervenção do estado e dos médicos dentro da família e em torno dela criou-se um mito de infância que não correspondia à realidade, pois essa infância lhe era negada pelo árduo trabalho que desempenhava nas fábricas. Juntamente com a mulher, a criança compunha a maior parte da mão-de-obra.

As relações entre a infância e modernidade se estabelecem no esforço de produção de uma tradição, o ser criança civilizada, compreendendo o tempo da infância como produção sociocultural. A escola se torna a formadora da moralidade, um meio de afastar a criança da sociedade e da degeneração mora. Num segundo momento, as crianças passaram a freqüentar a escola para aprender a entrar no mundo dos adultos.

Disciplinar a infância era necessário, assim como evitar que ela se desvirtuasse e se tornasse uma ameaça a ordem. A escola, neste contexto, torna-se espaço disciplinador. Desde o século XVIII ela dividia-se em duas: burguesa (liceu) e popular (primária), cujas funções são bem definidas.[11] Para as crianças pobres, para quem a sociedade burguesa não ansiava uma educação esmerada, foram criadas as escolas agrotécnicas, que tinham por finalidade punir e educar através do trabalho. O esforço na produção da criança civilizada e sua moralização se faria, nestes casos por meio do trabalho e aprendizagem de um ofício.[12]

O governo do Estado de Minas Gerais criou diversas escolas rurais em Minas, em 8 de janeiro de 1912, através do Decreto 3.399. As escolas rurais, que neste período foram uma verdadeira febre em Minas Gerais, tinham um ensino voltado para o aprendizado agrícola, onde órfãos e meninos pobres do campo poderiam se profissionalizar e se tornarem elementos úteis para o desenvolvimento e modernização do Brasil. Pode-se afirmar que os hábitos de escolaridade irão se diferenciar não segundo condições, mas funções.

Com a nova sociedade capitalista, o trabalho passa a ser uma questão de progresso, status e ascensão social, para os grupos médios e as elites, enquanto que para os menos favorecidos torna-se motivo de discriminação. O desempregado é considerado um desocupado, um preguiçoso e a preguiça não combina com o progresso. Segundo Rosa Maria Barbosa de Araújo, “a ideologia no novo regime afirmava que os costumes civilizados venceriam a preguiça dos desocupados”. [13]

Para o Republicano a ociosidade era uma ameaça à ordem e a vadiagem uma ameaça à moral e os bons costumes, sendo que a união dos dois poderia levar à criminalidade. Não apenas adultos, mas também as crianças acabavam sendo vítimas da perseguição dos moralistas e da ciência médica, que tentavam explicar a violência dos pequenos, que representava um ameaça ao mundo adulto. Nos periódicos encontramos uma série de crimes cometidos por crianças ou adolescentes, onde as vítimas são colegas, amigos, rivais e as circunstâncias variam de caso para caso, e que acabam por justificar a necessidade de civilidade.

Na estrada que vai de S. João Neponuceno ao Descoberto deu-se num desses últimos dias, um assassinato que tem tanto de bárbaro quanto de horroroso, não só pelas circunstancias que rodeiam o crime, quanto pelas condições do criminoso, que é menos de 8 anos. Ao instinto perverso do crime, á precocidade com que se apresenta no caminho do mal, junta esse novel delinqüente a ferocidade da índole e da dissimulação dos criminosos alibres. Narremos singelamente o fato tal qual se passou:

Sábado ou domingo ultimo, foram alguns carreiros com seus carregamentos de café, do Descoberto a São João e levavam como condieiros alguns menores, entre os quais dois de cor preta, de 8 anos de idade, e outro maior de 12 a 13 anos. Nessa ultima localidade desavieram-se dois desses menores, o de maior idade e um dos outros, e aí, parece, chegaram às vias de fato.

De regresso á primeira daquelas localidades, entendeu o menino maior vingar-se da pobre criança com a qual brigara naturalmente por esta estar de condição humilde, sem que os carreiros pudessem ou quisessem impedi-lo. Efetivamente, nenhum deles sabe, pelo menos assim o declararam, como se deu o delito; mas o que é certo é que o menor foi morto com um tiro pelas costas cujo projétil se empregou na região accipital da vitima saindo-lhe por um dos olhos e produzindo-lhe a morte 24 horas depois. Consta-se que a vitima pedia ao seu algoz que não disparasse a arma, que a tudo isso foi surdo o instinto feroz do assassino que, mal se lhe deparara a ocasião, a prostrara por terra com um tiro certeiro. É esta a versão corrente ali.

Entretanto, com surpresa de todos, apresentou-se á autoridade policial do Descoberto, não o menino criminoso, porém o outro, o menor, denunciando-se autor do crime e declarando que o praticara para... experimentar a arma. Por falta de médicos não se faz autópsia do cadáver, contentando-se a autoridade policial com um corpo de delito à moda da roça. Que o inquirido para a descoberta do legítimo delinqüente não se faça também para inglês ver
."
[14]

Um crime de adultos, praticado por crianças e, interessante notar, que por motivo fútil. O jornal dá a entender que o agressor se aproveita da condição humilde da outra criança. Crianças agindo como adultos e inseridas no mundo dos adultos resultam em ações e fatos que desmentem a inocência infantil, tão defendida pela sociedade burguesa. Neste sentido, cabe citar um trecho do livro de Mirian Moreira Leite, elaborado a partir de documentação produzida por vianjantes estrangeiros, no Brasil do século XIX, que se refere às crianças brasileiras do final do século XIX. O trecho foi tirado dos apontamentos de um viajante, o inglês Robert Edward Edgcumbe, escritos em 1886, onde que este viajante compara as crianças brasileiras com as inglesas. Ele se assusta com a inserção precoce das crianças no mundo dos adultos.

A menor usa brincos e braceletes e meninos de oito anos exibem cigarros... A linguagem dos meninos é espantosa, embora eu deva admitir que provavelmente, em grande parte, não têm consciência do que estão dizendo. Desconhecem os jogos. O único tipo de brinquedo em que tomam parte é o de ‘pular sela’, e isso só de vez em quando.”[15]

Os relatos de viajantes, que estivem ano Brasil no século XIX, revelam aspectos importantes da vida familiar brasileira, mas eles enfatizam as famílias de condição econômica e social superior. Entre as famílias mais humildes, alguns dados podem se mostrar desencontrados. Havia um zelo maior entre as famílias abastardas sobre seus filhos e suas mulheres, que raramente deixavam a segurança do lar para se aventurarem nas ruas, povoadas de trabalhadores e de crianças descalças.

Havia um grande movimento de controle social no Brasil, já nessa época, em que o Brasil está finalmente se transformando em um país capitalista, após a abolição da escravidão e com o uso do trabalho livre. Os espaços passam a ser mais vigiados, assim como a conduta das pessoas. Os pobres são os mais atingidos, sendo que a violência se concentra – nas suas diversas formas – nas mulheres e nas crianças. Mulheres pobres recebem facilmente o estigma de meretriz, de mulher da vida, quando desfila desacompanhada pelas ruas e freqüenta os botecos da periferia. Sobre a mulher e a criança recai uma forte carga de pressão social, um desejo de disciplinar os sentimentos e as ações.

No século XIX consolidou-se a idéia de que a mulher adulta deveria ter uma educação voltado para o lar, para a maternidade e ser, desta forma responsável pela formação de uma criança civilidade e de uma família harmoniosa. A mulher moderna é aquela que tem amor pelo trabalho doméstico, assim, as mulheres burguesas torna-se senhoras do lar e passam a representar o padrão da boa mulher, da boa mãe: a dona-de-casa. À separação entre o público e o privado contribuiu para uma demarcação entre os comportamentos entre homens e mulheres, adultos e crianças. O espaço privado passa a ser entendido não como espaço de privacidade, mas como lugar de privação, onde deveriam ficar as mulheres e as crianças, resguardadas a imoralidade do espaço público.

Em contra-partida temos mulheres que fogem do ideal burguês e que cometem atos considerados violentos, em situações mais extremas, como o infanticídio. O infanticídio é motivado, em alguns casos, pelo desespero de jovens mães solteiras, que não conseguem enfrentar o olhar punitivo da família e da sociedade, abandonas pelo namorado ou noivo, levadas a tomar atitudes extremas e desesperadas, sob forte pressão social. Mulheres operárias, que precisam do salário para sobreviver ou mesmo moças de família, que não podem “desonrar” o nome e a tradição familiares.

Ontem, ao meio-dia, o Sr,. João dos Anjos, empregado dos Drs. Christovam de Andrade, Gama & Comp., morador da vagem, próxima à linha de Piau, saindo á procura de uma carneira que havia desapparecido há dois dias, encontrou no brejal uma caçamba velha e debaixo desta um embrulho de saccos também velho e por cima deles um tijolo. Causando-lhe especie o tal achado, o sr. Anjos tratou de verifica-lo . Desfazendo o embrulho, deparou-se estão com uma menina recém-nascida, que aquele sr. levou á suas casa, ligando a esposa desde o umbigo da infeliz criança. Isso feito, d. Jacintha, que assim se chama aquela senhora, correu a vizinhança a ver quem podia pertencer a recém-nascida, pois suspeitava fosso filha de Ricardina dos Santos, que havia dado luz horas antes.

Ricardina confessou ser sua filha a referida criança, acrescentando ser o pae da mesma, Francisco da Silva, morador em Benfica, e hora residente em Vargem Grande. Disse mais a desnaturada mulher que, com vergonha de sua mãe havia ocultado daquela forma a sua filhinha e que pretendia comunicar aquela o ocorrido.A desnaturada mãe pediu a João dos Anjos que não comunicasse o fato a polícia. A notícia, porém, chegou ao conhecimento do sr. delegado de policia que, comparecendo ao local interrogou a Ricardina e as testemunhas João dos Anjos e sua mulher, Leopoldo dos Anjos, Joaquim Pereira de Jesus e Virgilia de Tal, verificando aquella autoridade se tratar de um crime.

Foi nomeado escrivão ad-hoe o sr. Herculano Gonçalves da Silva, sendo convidados para peritos os Drs. Leocardio Chaves e Octaviano Costa. Interrogada habilmente pelo sr. delegado de policia, resolveu Ricardina dizer a verdade, confessando ser o pai da recém-nascida seu cunhado Martins Dias as Silva, casado com sua irmã Carlota, a quem até hoje entretivera relações.

Ricardina disse mais que, há cerca de 15 dias, ela e seu cunhado combinaram fazer desaparecer a criança pelo processo acima descrito, a fim de que o fato não chegasse ao conhecimento de sua irmã Carlota. Em seguida foi interrogado Martins Dias da Silva que caiu em fortes contradições.
Em vista dos depoimentos das testemunhas (...), o sr. delegado fez recolher Martins á cadeia.

_ O dr. Octaviano Costa procedeu a exame a recém-nascida, não encontrando nesta contusões ou ferimentos.
_ A inditosa criancinha ficou em poder de Inez dos Santos. Mãe de Ricardina, que regressou ontem a esta cidade, da viagem que fizera.
_ O estado de saúde da recém-nascida é satisfatório
.”
[16]


A mulher é vista como um ser inferior e perigoso Rachel Soihet, ao estudar a condição feninia e a violência entre as mulheres pobres do Rio de janeiro, depara-se com a intolerância ao sexo feminino, endossada pela ciência médica da época. A mulher normal é classificada como uma semicriminalóide inofensiva. Ela não tem amigos, portanto não comete delitos. As demais dividiam-se em:

a) criminosa nata, mulheres inteligentes e sensuais, consideradas as mais perigosas pois possuíam tendência natural ao mal;

b) as criminosas por ocasião, eram as mulheres perversas que possuíam vícios, mas também tinham algumas virtudes, como o pudor e a maternidade. - estranhamente, as mulheres que cometem o aborto são enquadradas dentro desta categoria;

c) as criminosas por paixão, premeditadoras e perversas, feralmente cometem crimes na juventude – as infanticidas estão neste grupo -, seus delitos são movidos pelo amor sexual (paixão).[17]

Crianças e mulheres, todos inseridos dentro do núcleo familiar, compartilha as aguras de uma sociedade dominada pelos homens adultos. Pobres ou ricos, eles desejam ter controle sobre aqueles que consideram – ou deseja que sejam – inferiores a ele. O controle social começava nas casas de família, se estendia para as áreas de lazer e para as ruas das cidades, onde crianças pobres desacompanhadas de adultos eram consideradas perigosas e mulheres simples do povo, criaturas sem moral. A civilidade pertencia à elite e ela não pretendia compartilhar com os menos favorecidos as vantagens da modernidade. Para ela, civilizar o povo era, acima de tudo, disciplina-lo, mostrando-lhe o seu lugar e o seu papel na sociedade.

Vitimas ora da caridade, ora da violência, mulheres e crianças foram aos poucos ocupando seu espaço dentro do mosaico social da república. A ampliação do ensino público, embora não tenha atendido a todos, foi uma conquista para as crianças, o reconhecimento do seu valor no trabalho – que ela conquista mais a cada ano -, ao voto e à representação política veio trazer à mulher possibilidades maiores de crescimento enquanto gênero e pessoa são elementos da história que vão sendo construídos a cada dia.


[1] Observa este autor ao realizar seu estudo, que muitas vezes opiniões de homens tidos como ilustres e sábios em dado estão em desacordo com outros dados e documentos do mesmo período, sendo elas por si só insuficientes para se compor um panorama geral, pois esses homens geralmente tendem a ver a sociedade da forma como gostariam que ela fosse (Ver: ÀRIES, Philippe. História social da criança e da família. /trad. Dora Flaksman/ 2. ed. Rio de Janeiro; Guanabara Koovam, 1981).
[2] KUHLMANN JR, Moysés, FERNANDES, Rogério. Sobre a História da Infância. In. FARIA FILHO, Luciano Mendes. A infância e sua educação – materiais, praticas e representações.- Belo Horizontes: Autêntica, 2004. p. 16-7.
[3] NARDELLI, Áurea. Uma família sem brasões - memórias.v.1, 2o. ed. Juiz de Fora: ESDEUA Empresa Gráfica Ltda. 1984.
[4] Os investimentos aplicados na carreira escolar dos filhos viriam integrar-se no sistema das estratégias de reprodução, estratégias mais ou menos compatíveis e mais ou menos rentáveis conforme o tipo de capital a transmitir, e pelas quais a geração esforça-se por transmitir à seguinte os privilégios que detém. (BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas - São Paulo; Perspectiva, S.A: 1992). O capital cultural não oferece garantias de ascensão social, mas representa uma possibilidade de melhor de vida ou de melhor gerir o patrimônio material ou imaterial da família.

[5] Moleques atrevidos. Jornal do Commercio. Juiz de Fora, 18 de janeiro, ano XIII, n. 3521, p. 02
[6] Mãe Cruel. Jornal do Commercio. Juiz de Fora, 20 de janeiro de 1900. n. 1053, p.01.
[7] Menor seviciada. Jornal do Commercio. Juiz de Fora, 16 de agosto de 1900, n. 1122, p. 01
[8] NAVA, Pedro. Balão Cativo: memórias/2 – 3ª ed. – Rio de Janeiro, José Olympio, 1977, p. 04 - 09
[9] NAVA, Pedro. Baú de Ossos. – 6ª ed – Rio de Janirio: Nova Fronteira, 1983, p 294
[10] De tendência Marxista, essa autora focaliza em particular o universo operário (urbano) e o conflito de classes, que vai do público ao privado. RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1889-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. Ver também, RAGO, Margareth. A sexualidade feminina entre o desejo e a norma moral sexual e cultura literária feminina no Brasil, 1900-1932. Revista Brasileira de História. São Paulo: v. 14, n.28, pp. 28-44, 1994.
[11] ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. /trad. Dora Flaksman/ 2. ed. Rio de Janeiro; Guanabara Koovam, 1981, 220
[12] VEIGA, Cynthia greive. A infância e a modernidade: ações, saberes e sujeitos. In. In. FARIA FILHO, Luciano Mendes. A infância e sua educação – materiais, praticas e representações.- Belo Horizontes: Autêntica, 2004, p. 69-70.
[13] ARAÚJO, Rosa Maria Barbosa de. A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio de janeiro republicano. Rio de janeiro, Rocco. 1993, p. 48
[14] Jornal do Commercio. Juiz de Fora, 24 de agosto de 1900. n. 1123, p.01
[15] LEITE, Mirian Moreira. A condição feminina no Rio de Janeiro, século XIX. Antologia de textos de viajantes estrangeiros. – São Paulo: HUCITE; Ed. da USP, 1984, p. 56
[16] Tentativa de infanticídio. Jornal do Commercio. Juiz de Fora, 24 de janeiro de 1901 n. 1672, p. 01
[17] SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920 – Rio de Janeiros: Forense Universitária, 1989, p. 98-105