quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

WILL EISNER: UM SONHADOR NOS QUADRINHOS





Os quadrinhos – a arte sequencial – são a minha mídia. Eu os vejo como a minha mídia tanto quanto um escritor que escreve apenas com palavras ou um cineasta que só escreve em filmes. Os quadrinhos são uma mídia palpável, singular: têm perímetros e parâmetros; têm sua própria gramática; têm suas regras específicas; têm seus limites, e têm potencialidades ainda pouco exploradas.
(Will Eisner)

O livro sobre a vida de Will Eisner, lançado no Brasil pela Editora Globo, na coleção Biblioteca Azul, em 2013, é uma das mais recentes obras que trata da vida do renomado autor de quadrinhos, falecido em 2005.

O autor Michael Schumacher teve uma habilidade incrível de criar pontes entre a vida de Eisner, a história dos quadrinhos e contextualizar tudo isso de uma forma clara e até didática ao longo da narrativa. A vida de Eisner nos ajuda a entender as mudanças, a evolução, os problemas, altos e baixos do mercado dos quadrinhos nos Estados Unidos.

Ao mesmo tempo em que é o protagonista, Eisner atrai outros personagens à sua órbita, muitos deles autores de renome, que dão depoimentos, que são citados e apresentados ao público de forma a se ter um panorama muito mais extenso do que foi e é a indústria dos quadrinhos.

Também a contextualização histórica é incrivelmente bem feita. A crise de 1929 praticamente abre o livro, aborda-se o antissemitismo, a II Guerra Mundial, a Guerra da Coréia e do Vietnã. Marcos na história dos Estados Unidos que influenciaram aquela sociedade e ainda deixam suas marcas.

A obra de Eisner, suas criações, sucessos e fracassos são abordados de forma minuciosa. Suas obras são comentadas não apelas pelo biógrafo, mas ele insere resenhas, partes de entrevistas de Eisner, expondo vários pontos de vista. Percebe-se que foi realizado um extenso trabalho de pesquisa que faz com que o leitor entenda melhor as motivações de Will Eisner ao criar personagens, ao iniciar novos projetos, ao iniciar e tocar seus empreendimentos empresariais.

Aborda-se, por exemplo, as opiniões de Eisner com relação ao racismo, sua capacidade de lidar com o mundo empresarial sem deixar de lado seus ideais como artista; sua preocupação em dar aos quadrinhos reconhecimento tanto como arte como quanto leitura “séria”;  sua crença inabalável nos quadrinhos como instrumento para educação, dentre tantos outros assuntos que faziam parte do seu universo de interesses.



Eisner foi talvez o primeiro artista dos quadrinhos a declarar publicamente (embora não tenha sido citado de forma direta) que achava que os quadrinhos poderiam ser mais do que simples entretenimento (SCHUMACHER, 2013:96).

Eisner pode ser visto, por meio do livro, através de diversos ângulos: o empresário, o visionário, o pai carinho, o filho responsável, o irmão protetor, o marido amoroso e o artista que ainda não havia encontrado seu limite. Aliás, umas das coisas mais encantadoras em Eisner: aos 87 anos de idade ele ainda produzia com qualidade e ainda não havia encerrado sua carreira ois acreditava que precisa ainda produzir uma obra definitiva.

Muitas passagens são interessantes. Eu particularmente me senti mergulhando em um mundo novo. Nunca tinha parado para ver os quadrinhos do ponto de vista empresarial. Normalmente analiso o conteúdo dos quadrinhos, as representações neles contidas, mas nunca parei para pensar que isso poderia ter alguma ligação com a indústria em si, com a empresa.

O livro apresenta a dinâmica dos estúdios, a questão da criação e da apropriação da arte criada. Mostra os bastidores daquela fábrica de sonhos. Essa visão dos bastidores, proporcionada pelo fato de que Will Eisner ter sido empresário, abriu meus olhos para certos nuances que me fizeram compreender melhor os quadrinhos. Ponto extra para uma leitura que por si só já foi extremamente prazerosa.

Will Eisner tinha tino para os negócios. Com 19 anos já comandava um estúdio, aos 25 anos já conseguia sustentar toda a família e havia construído um nome na indústria dos quadrinhos. Como empresário procurava ser justo com seus funcionários. Como artista tentou garantir ao máximo seus direitos sobre aquilo que criava. Passou isso tanto para seus colaboradores mais diretos quanto para seus alunos. John Walker, em um depoimento, exemplifica bem esse lado do Eisner, que gostava de um contrato, mas um contrato que fosse bom para o empresário e para o artista. Ele achava que o artista tinha que ter consciência do seu valor e do valor daquilo que criava.

Ele dizia “Sua arte tem valor. Sua arte vai ter valor daqui a décadas, mesmo depois que você morrer. Você ainda não sabe, mas um cartum Walker pode vir a ser famoso” (SCHUMACHER, 2013: 256).

Chamou minha atenção a presença ou participação de Eisner em projetos de amigos e colegas que nem sempre lhe foram creditados (não por má fé, claro) ou criações suas assinadas com pseudônimos aos quais eu nunca iria relacioná-lo. Percebi que eu conhecia um pouco mais da obra dele do que imaginava.

Uma passagem curiosa foi a colaboração de Eisner no desenvolvimento de um personagem criado por um ex-aluno, John Walker: o urso Snuggle (no Brasil chamado Fofo), que foi símbolo da campanha de um amaciante de roupas. Walker mostrou a Eisner seus rascunhos e este disse que ele deveria optar pelo urso, sendo que Eisner ajudou a dar retoques no original, sendo o desenho definitivo entregue à empresa e aprovado.



Assim que viu o primeiro comercial com Snuggle, Eisner ligou para Walker. “Eles aceitaram o maldito ursinho”, disse ele, claramente feliz com sua participação no desenho. “Eu falei que estava certo, Johnny” (SCHUMACHER, 2013: 257).

Confesso que conheço pouco da obra de Eisner. Já li e utilizei um de seus manuais mais famosos (Quadrinhos e Arte Sequencial) e li um de seus grandes sucessos (O nome do jogo). Alguns colegas e amigos, com certeza, vão considerar isso uma obscenidade. Mas ao final da leitura eu me senti interessada (e mesmo motivada) em conhecer mais, tanto da obra quanto do autor, começando por Spirit.

O personagem mais famoso de Eisner é um desconhecido para mim. Eu sei que Spirit é um personagem criado por Will Eisner e posso até fazer uma breve descrição dele, mas nunca li uma revista, uma só história do personagem, mácula essa a que pretendo apagar até o mais breve possível. Não apenas Spirit, mas outros personagens menos conhecidos despertaram meu interesse. Acredito que possam ser acessados até pela internet uma vez que há museus digitais de quadrinhos que disponibilizam material mais antigo.



Ao terminar de ler o livro, não pude deixar de procurar na minha estante o documentário Will Eisner: profissão cartunista (por sinal citado no livro) o qual me aguarda há mais de um ano e eu, vergonhosamente, nunca encontrei tempo para ele. Uma resolução para este ano é preparar uma aula ou um encontro cultural para assistir ao documentário e, quem sabe, promover uma roda de discussão?

Enfim, eu indico o livro para quem quiser conhecer um pouco da história dos quadrinhos, para quem quiser entender como essa mídia se consolidou nos Estados Unidos, para quem quer tentar novas aventuras literárias, encarando os quadrinhos como uma coisa séria e de gente grande. Will Eisner tem toda a propriedade de conduzir o leitor por esse caminho afinal foram praticamente 70 anos dedicados a essa arte. Acho que só isso vale a leitura do livro, afinal, quem você conhece que atuou 70 anos numa profissão fazendo exatamente e que gosta?


REFERÊNCIA
SCHUMACHER, Michael. Will Eisner: um sonhador nos quadrinhos. – São Paulo: Globo, 2013.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

A carne e o sangue: leitura comentada


Autora: Mary Del Priore
Ano: 2012

É a minha primeira resenha de 2014. Como havia dito em postagem anterior, estou determinada a resenhar das as minhas leituras, uma forma de pensar sobre o que eu li e dividir minhas impressões. 

Esse livro trata do triangulo amoroso envolvendo Dom Pedro I, a Imperatriz Leopoldina e a Marquesa de Santos, amante mais famosa de Dom Pedro I. O título faz uma referência ao dilema vivido pelo Imperador, dividido entre a carne (o amor carnal) e o sangue (o dever para com o Império e a família).

Mas não se trata apenas disso. Como em outros livros, A Carne e o Sangue coloca na mesa a intimidade da nobreza durante o Império, de forma a se construir imagens diferentes dos nossos monarcas e não apenas dele. A mulher está no centro da narrativa. A Imperatriz Leopoldina, influenciada pelo romantismo característico de sua época e devotada ao dever com sua família. Mulher que é afligida pelas mais torpes humilhações, que sofre não apenas violência física por parte do marido, mas também simbólica. Mulher martirizada ao ter uma morte precoce, que acaba comprometendo o próprio Imperador, cuja reputação fica irremediavelmente manchada entre a nobreza europeia e entre seus próprios súditos.

De outro lado, a malfadada Marquesa de Santos, mulher que se entrega à paixão e que desafia os cânones de sua época. Ela não é apenas mais uma amante do Imperador Dom Pedro, mas torna-se figura política influente do Império, colecionando desafetos, esbanjando audácia.  Mulher ambiciosa que não tem medo de lutar pelo que deseja. Domitila não é uma santa e não está disposta a se sacrificar em nome da virtude. É o oposto de Leopoldina.

Domitila, Dom Pedro e Dona Leopoldina
Fonte: http://goo.gl/QYQ2vm 

É um livro que fala das mulheres do século XIX, santas e pecadoras, mulheres que estão presentes não apenas na Corte, mas na sociedade brasileira.

A autora traz à luz a intimidade dos amantes assim como suas desventuras. O pano de fundo é o Primeiro Reinado. A proclamação, a Guerra da Cisplatina, a abdicação. Todos esses momentos se entrelaçam entre as aventuras amorosas do Imperador, seus filhos (legítimos ou bastardos) e as mulheres que marcaram sua vida.

O leitor corre o risco de se identificar com Dona Leopoldina e/ou com Domitila. As fraquezas pessoais e políticas de Dom Pedro I são expostas. A narrativa baseia-se em fontes como memórias, biografias cartas e jornais da época, citando algumas. São desvelados alguns eventos pouco conhecidos que ocorreram na época, como revoltas contra Dom Pedro I.

O livro é de leitura fácil fugindo da linguagem acadêmica que caracteriza muitos dos livros de história que são produzidos por historiares. Aliás, essa é uma característica da autora, que escreve para m público muito mais amplo e ávido por esse tipo de leitura.