domingo, 30 de julho de 2017

MINHAS (QUASE) FÉRIAS DE JULHO

Nas minhas pequenas férias de julho eu tentei me organizar o máximo possível depois da enxurrada de compromissos e eventos que marcaram o primeiro semestre. E eu ainda me sinto cansada.

Uma amiga comentou que isso acontece porque o tempo é implacável, ou seja: estou ficando velha. No entanto, acho que não é bem a idade, mas o excesso de responsabilidades. Escola, família, pesquisas,  relações afetivas e profissionais, tudo isso acaba se de tornando desgastante. 

Para fugir um pouco disso tudo, e em busca de maior motivação para encarar este segundo semestre, eu uni trabalho e lazer e fui para Brasília (DF). Local improvável para se passar as férias, eu sei. Mas este ano tivemos lá o XXIX Simpósio Nacional de História, organizado pela ANPUH (Associação de História), sediado na UnB.


Sou associada da ANPUH há mais de 20 anos. Meu primeiro encontro regional foi em 1991, na UFOP, em Mariana (MG), quando ainda era estudante, e o nacional em 1995, na UFPE, em Recife (PE). Desde então raramente falto a um evento, seja ele nacional ou regional. Tenho lá meus prós e contras com relação à ANPUH, me dou esse direito pelo tempo que sou associada. 

Acho que a ANPUH é um excelente espaço para debates e para se fazer novos contatos. Os encontros, também, são muito bons para se conhecer o que vem sendo pesquisado no Brasil e dar uma reciclada na pratica docente. Os simpósios e encontros regionais oferecem ainda a oportunidade de novas leituras (sempre há feitas de livros e muitos lançamentos) e reencontrar amigos. Aliás, aproveitei para lançar meu livro lá. Foi uma experiência gratificante.
Lançamento do meu livro, no ICC Norte, dia 25 de julho, ao lado dos amigos Afonso, Luciana e André.
No entanto, a ANPUH ainda peca em uma coisa: ela não atrai o professor da educação básica. Veja, por exemplo, o caso de Minas Gerais. Se um professor de História de cada município mineiro fosse participar da ANPUH, seriam mais de 800 participantes apenas de um Estado Brasileiro. E um ainda é pouco, levando em consideração o número de escolas que temos no nosso em Minas Gerais. 

Incentivar o professor/pesquisador deveria ser um dos nortes da ANPUH. Ao invés disso estamos criando uma "República de Doutores", onde um professor da educação básica acaba sentindo-se marginalizado. Eu sou cara de pau demais para me sentir assim, mas não vejo outros colegas motivados a investir na participação em eventos acadêmicos. Uma das frases que eu mais ouço é "Você ainda está na escola?" Eu me pergunto: por que acham que eu deveria estar em outro lugar?

Mesa redonda: Democracia política e tradições golpistas na história republicana brasileira, com  Eloisa Barroso (UnB), Rodrigo Pato Sá Mota (UFMG), Marcos Francisco Napolitano De Eugenio (USP) e Marcelo Siqueira Ridenti (UNICAMP). A melhor mesa que eu assisti e que me fez perceber que não estou tão por fora do assunto o quanto eu imaginava.

Eu apresentei um trabalho sobre Pagu, cuja versão simplificada eu já disponibilizei aqui no blog (clique aqui) e estou dando os retoques finais no artigo completo, que será enviado para os anais do evento. Minha amiga e companheira de pesquisa, Valéria Fernandes da Silva, também apresentou um trabalho muito interessante sobre a adaptação do romance de Machado de Assis, "Helena", para mangá. Infelizmente, desta vez não tivemos um ST (simpósio temático) sobre Quadrinhos e História, mas quem sabe no próximo simpósio?

Brasília acabou se tornando meu roteiro de férias. Devo confessar que foi uma grata surpresa. A capital federal tem seus encantos. A arquitetura é grandiosa, difícil não apreciar. A construção que eu mais gostei foi a Catedral. E olhe que eu tenho uma queda por igrejas antigas e rústicas, mas a catedral de Brasília me cativou. 


A cidade é um exemplo de como paisagismo e arquitetura combinados podem transformar uma região quase inóspita em um centro urbano exuberante. Sua arquitetura monumental é uma referência à grandiosidade do próprio Brasil. Dos prédios públicos aos espaços destinados ao lazer, como os parques e os clubes e restaurantes construídos ao longo do lago Paranoá, tudo passa a impressão de amplitude.

Para quem não sabe (eu não sabia), o Lago Paranoá é um lago artificial de 38 quilômetros quadrados, cuja ideia da criação faz parte do relatória da Missão Cruls, ocorrida em 1894, sob o governo do Marechal Floriano Peixoto. Esta missão tinha por objetivo estudar e explorar a região do Planalto Central, em obediência à Emenda Lauto Müller (1890) que determinava a mudança da capital federal do Rio de Janeiro para o centro do país. Juscelino Kubitschek, portanto, tirou sua inspiração para a construção de Brasília da Constituição de 1891.

Foto tirada às margens do Lago Paranoá.
Brasília é uma cidade moderna e bonita, que carrega um pouco de cada região. A culinária local é maravilhosa. Eu adorei dos "dadinhos de tapioca", por exemplo, uma iguaria que eu nunca havia experimentado. Diga-se de passagem, eu comi muito bem Brasília, dos bares mais simples aos restaurantes mais badalados. A culinária brasiliense é muito diversificada. 

Como em toda capital podemos encontrar em Brasília de tudo um pouco. Por exemplo, eu almocei dois dias em um restaurante chinês próximo à UnB. Mas o que, me parece, predomina mais na região é a culinária nordestina. 

Eu fui a um restaurante nordestino fantástico, o Mangai. O estabelecimento em si é muito bonito, às margens do lago, próximo à ponte Juscelino Kubitschek, também conhecida como "Terceira Ponte". O local tem uma vista linda do lago e da ponte e os clientes do restaurante aproveitam para tirarem fotos. Menos eu, que esqueci meu celular no carro e não tirei foto alguma. Acontece.

Restaurante Mangai, que fica próximo ao lago de Brasília.
Em resumo, minhas quase férias foram muito acima da expectativa. Eu participei de um evento acadêmico, reencontrei amigos, conheci outras pessoas e ainda tive tempo de me divertir um pouco e "turistar". A próxima ANPUH Nacional será em Recife, em 2019, cidade que eu adoro e espero poder estar lá. Chega a ser até nostálgico: meu primeiro simpósio Nacional foi justamente lá, há 22 anos atrás.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

PAGÚ: A MUSA DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO BRASIL

Auto retrato de Pagu - 1929
Das muitas personagens femininas ligadas às artes e à literatura brasileiras o nome de Patrícia Galvão, a “Pagu”, talvez seja o que mais se sustentou dentro da história do Brasil. Nascida em 08 de junho de 1910, Patrícia Galvão foi uma mulher além de seu tempo, destacando-se como romancista, poetisa, jornalista, ativista política e como pioneira nas histórias em quadrinhos. 

Usou muitos pseudônimos (Solange Sohl, Zanza, Pat, Patsy, Pt., Ariel, P.G., Mara Lobo, K.B.Luda, Irmã Paula, G. Lea, Leonnie, Gim, Brequinha, Peste, Cobra, King Shelter), mas aquele que a imortalizou foi o de Pagu, apelido que recebeu do poeta Raul Bopp, que a ela dedicou uma de suas poesias. A jovem que aos 18 anos de idade que se envolveu em um dos movimentos culturais mais significativos do século XX no Brasil.

O Movimento Modernista teve início nos anos de 1920 e prolongou-se até a década de 1940. Teve como marco a Semana da Arte Moderna, em 1922, realizada em São Paulo. O movimento propunha uma mudança estética nas artes e na literatura, como uma forma de romper com a tradição colonialista e oligárquica do país. Buscava-se na cultura popular a identidade nacional. Para os modernistas, era necessário valorizar a multiplicidade étnico-cultural do país. O ano de 1922 foi marcado, também, pelo surgimento do Partido Comunista.

Pagu participou justamente da segunda fase do movimento modernista, quando ela já tinha seus contornos bem definidos. Ela foi colaboradora da Revista de Antropofagia fundada por um grupo de modernistas dissidentes, formado por Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Raul Bopp, Oswaldo Costa, Geraldo Ferraz e Fernando Mendes de Almeida.

Este grupo havia aderido a uma linguagem experimental, marcada pela contestação, inspirada no surrealismo.  Pagu colaborava com a ilustração da revista, ao lado renomados artistas como Di Cavalcante. Encontrou no desenho e na escrita formas de expressar suas ideias e suas emoções. Ela se tornou aprendiz de dois nomes importantes do modernismo brasileiro, nas artes e na literatura, Tarsília do Amaral e Oswaldo de Andrade.

Oswald de Andrade foi um dos escritores mais importantes do modernismo brasileiro e um dos fundadores do movimento modernista. Sua crença na liberdade na construção do texto, a ruptura com a formalidade, influenciaram Pagu em seus escritos. Na época em que conheceu Pagu, mantinha um relacionamento amoroso com a celebrada pintora modernista Tarsila do Amaral.
 
Tarsília do Amaral por Pagu
Tarsília foi outra referência para Pagu, que aos 18 anos encontrou no desenho uma das suas primeiras formas de expressão artística. Seus desenhos, livres dos padrões estéticos da época, lembram o traço de Tarsília. Mas Pagu tinha características próprias que tornam sua produção única. Mas a parceria com a pintora duraria pouco tempo. Tarsília encerra seu namoro com Oswald ao descobrir que ele estava tendo um caso com a jovem Pagu.

Seus desenhos, assim como todo o montante da sua abra, se caracterizavam pela liberdade estética. Entre 1929 e 1931 ela utilizou do desenho como uma das suas primeiras formas de expressão. Seus poemas eram acompanhados de ilustrações, traços simples, quase infantis. As ilustrações revelavam a Pagu que amava seus gatos, a mulher apaixonada e sonhadora, a jovem modernista rebelde. Seus quadrinhos suas charges mostram a jovem militante que procura no movimento comunista um ideal de justiça que atendesse a todos, homens e mulheres.

Pagu não era uma mulher comum. Não obedecia aos estereótipos femininos da sua época. Ela fumava, bebia e frequentava ambientes considerados masculinos. Seu comportamento era tido como imoral, ela falava palavrões e não temia as autoridades, muito menos os homens.  A pesquisadora Maryllu de Oliveira Caixeta descreveu Pagu como “mulher de beleza provocante, sensualmente incomum no modo como se enfeitava, seu comportamento era um choque para a São Paulo provinciana.”

Da união com Oswald de Andrade nasceu o jornal semanário “O Homem do Povo”, em 1931, onde Pagu publicou o que podem ser considerados uns dos primeiros quadrinhos feitos por uma mulher no Brasil. A tira “Malakabeça, Fanika e Kabelluda”. 

São conhecidas apenas oito tiras produzidas por Pagu, mas acredita-se que ela criou muitas outras. Em seus quadrinhos ela trouxe dois tipos de representações: a da esposa cordada e obediente, que recebe em sua casa a sobrinha pobre, uma jovem contestadora e fora dos padrões convencionais, como era a própria Pagu. Logo na primeira tira, Kabelluda é apresentada para o público como um “pomo de discórdia” para o casamento dos tios. A tia, Fanika, tinha ciúmes da moça enquanto o tio Malakabeça lhe fazia todas as vontades.


Suas histórias em quadrinhos, assim como seus romances e outros escritos trazem uma parte da própria vivência de Pagu, podendo ser considerados autobiográficos. Seus quadrinhos deixavam claros os seus posicionamentos ideológicos. Pagu não se furtava de tocar em temas delicados, como o aborto, por exemplo, nem de denunciar a censura e a violência contra aqueles que defendiam ideais de esquerda. 

Em uma das tiras que Pagu publicou em 1931. Em uma delas a aventureira Kabelluda foge de casa para ir conhecer Portugal. Meses depois ela retorna com uma filha, “Kabeludinha”. Sua tia, Fanika, mata a criança: “Fanika moralista estragou porque Kabelluda era solteira.”  


Em uma tira, ela convence o tio a abrir um jornal voltado para os interesses do povo. Uma referência direta a um jornal comunista. O jornal faz sucesso, mas é fechado, assim como aconteceria com o “Homem do Povo”, que teve apenas oito edições, de março a abril de 1931, antes de empastelado por estudantes da Faculdade de Direito do Largo do Machado.

Em “O Homem do Povo”, além de fazer charges e quadrinhos, Pagu também possuía uma assinava uma coluna feminista, “A Mulher do Povo”, cujo desenho do título é de sua autoria. Nela publicava textos onde, muitas vezes, ironizava os valores tradicionais e a hipocrisia das mulheres e da sociedade paulistana. Por exemplo, em sua coluna e em suas tiras Pagu satirizou a visita de Edward, príncipe de Gales, herdeiro do trono britânico, ao Brasil, em fins de março de 1931. 

Pagu demonstrou todo seu desgosto pela atenção que o herdeiro britânico recebeu do governo de Getúlio Vargas e pelo deslumbramento que o príncipe despertou nas jovens brasileiras. Numa de suas tiras ela mostra Kabelluda ansiosa pela chegada do príncipe e no final desiludida aos conhecer os posicionamentos políticos dele.

Em algumas de suas tiras Kabelluda foi brutalizada e presa, antecipando aquele que seria o futuro de Patrícia Galvão. Pagu foi presa 23 vezes, principalmente por sua militância no Partido Comunista. Sua primeira prisão ocorreu em 23 de agosto de 1931, na cidade de Santos (SP), ao participar de um comício. Durante o protesto Pagu tentou socorrer um estivador negro, fuzilado pela polícia, diante dos filhos. Era a primeira vez que uma mulher havia sido presa no Brasil, por motivos políticos. Ela foi levada para o cárcere na Praça dos Andradas, cadeia que atualmente abria um centro cultural que leva o seu nome.

Das mulheres lembradas pela História do Brasil, Pagu talvez tenha sido a que mais teve visibilidade. Ela já foi tema de música, sua vida tornou-se documentário, filme e peça de teatro. Sobre ela já foram feitos colóquios e exposições. No meio acadêmico podemos encontrar teses, dissertações e artigos que fala da sua vida e da sua obra. Há uma revista acadêmica que leva seu nome, os “Cadernos Pagu”.

Mas a Pagu quadrinista, esta ainda está se revelando. De toda a sua produção, seu pioneirismo nos quadrinhos está sendo discutido recentemente. Isto se deve, a princípio, ao maior interesse que as histórias em quadrinhos têm despertado no meio acadêmico nos últimos anos e pelo crescente aumento da participação feminina na produção de quadrinhos no Brasil. Pagu tem se tornado uma referência para jovens quadrinistas e tem sido revisitada pelas feministas.

Em 2016, 106 anos após seu nascimento, a memória de Pagu a relevância do seu trabalho e sua militância fez com que ela fosse homenageada no dia Internacional da Mulher, quando a Social Comics, maior site de streaming de HQs da América Latina, anunciou a criação do o selo Pagu Comics, com o objetivo de destacar o trabalho das mulheres no mercado de quadrinhos brasileiro. As publicações que serão lançadas pelo selo contarão exclusivamente com histórias em quadrinhos nacionais feitas por mulheres. A iniciativa tem como objetivo fomentar a produção delas no mercado de HQs.

Fontes consultadas

ANDRADE, Oswald; GALVÃO, Patrícia; LIMA, Queiroz. O Homem do Povo. Março/abril, 1931. Facsimilar com introdução de Augusto de Campos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: Arquivo do Estado, 1984.

CAMPOS, Augusto. Pagu. Vida e Obra. São Paulo: Brasiliense, 1982.

CAIXETA, Maryllu de Oliveira. Pagu: “gata safada e corriqueira”. Letras & Letras, Uberlândia, n.20, p 59-67,  2004.

FLORES, Maria Bernadete Ramos. Dizer a infelicidade. Gênero: Niterói, v. 10, n. 2, p. 125-150, 0m. 2010 125- 150.

FURLANI, Lúcia Maria Teixeira. Croquis de Pagu - e outros momentos felizes que foram devorados reunidos. – Santos (SP): UNISANTA; São Paulo: Cortez, 2004.


------Pagu - Patrícia Galvão: livre na imaginação, no espaço e no tempo. - Santos (SP): UNISANTA, 1999.

sexta-feira, 21 de julho de 2017

LANÇAMENTO DO LIVRO "AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E A ESCOLA" EM BRASÍLIA

Estarei lançando o livro "As Histórias em Quadrinhos e a Escola" durante o XXIX Simpósio Nacional de História da ANPUH, que vai acontecer em Brasília, semana que vem. 

Todos são bem-vindos!

domingo, 16 de julho de 2017

A VARÍOLA NA ZONA DA MATA: O CASO DE LEOPOLDINA

 "A Varíola- Fia-te na virgem e não corras". Rio de Janeiro. O Malho. Imagem disponível em: http://arch.coc.fiocruz.br/index.php/caricatura-campanha-contra-variola-variola-fia-tena-virgem-e-nao-corras-rio-de-janeiro-o-malho, acesso em 16 jul. 2017.
Uma doença cujos registros remontam à antiguidade, a varíola foi, até final do século XVIII responsável pela morte de um incontável número de pessoas. Calcula-se que apenas no XVIII, morreram na Europa, cerca de sessenta milhões de vítimas de varíola[1].  

Esta doença é considerada uma herança dos colonizadores europeus e teria chegado à América entre os anos de 1518 ou início de 1519. Mais tarde ela foi associada ao tráfico de escravos, dado o aumento dos casos da doença após o início do tráfico negreiro. Segundo Sidney Chalhoub, os escravos transportados em péssimas condições e debilitados fisicamente eram alvos fáceis da doença e a transmitiam aos brasileiros nas localidades onde desembarcavam.[2]

No Brasil, ela teve seu primeiro registro na Bahia, quando em 1561 teria chegado à capitania trazida pelos passageiros de um navio.[3] A doença se espalhou rapidamente causando cerca de trinta mil mortes. Como eram mais vulneráveis à doenças trazidas pelos europeus, os indígenas foram os mais afetados. Populações inteiras foram dizimadas pela moléstia[4].

Havia dois tipos de varíola, a varíola major, que possuía uma grande taxa de mortalidade, que podia chegar a 30% dos infectados, e a varíola minor, com uma taxa de mortalidade de até menos de 1%.[5] Embora este último tipo fosse mais brando, o simples fato de ser identificada uma manifestação da doença era motivo para que se instaurasse o pânico, o medo de uma epidemia.

O contágio ocorre através do suor e qualquer outro tipo de secreção expelida pelo doente. Nas senzalas, dada a aglomeração de escravos em péssimas condições de higiene, a proliferação da doença era rápida. Segundo Márcia Amantino, como não havia tratamento específico para a varíola a solução encontrada era isolar o doente, o que nem sempre funcionava, devido a precariedade com a qual a população escrava era alojada nas fazendas.[6]

Foi por meio de estudos sobre a varíola que, em 1796, surgiu a primeira vacina, criada pelo médico Edward Jenner[7]. No Brasil a vacinação contra a varíola foi introduzida já no final do século XVIII, embora que de forma irregular e com várias ressalvas, pois a população temia tomar a vacina, com medo de adquirir a doença. No século XIX foram feitas várias tentativas de se combater as frequentes epidemias de varíola, mas a aceitação da vacina, mesmo que com algumas ressalvas, ocorreria apenas no século XX[8].

Em Minas Gerais, o primeiro relato oficial de vacinação contra varíola data de 11 de novembro de 1805, em carta escrita pelo governador da capitania que mencionava a ordem régia solicitando empenho das autoridades coloniais na conscientização da população da capitania da importância da vacinação pra o combate da moléstia[9].

Entre os anos de 1873-1874, uma epidemia de varíola atingiu várias cidades mineiras, sendo a capital, Ouro Preto, uma das mais atingidas. Até março de 1875 haviam sido registrados em Ouro Preto 789 casos e 204 óbitos decorrentes da moléstia. A vacinação era realizada nas igrejas, nas câmaras municipais, nas sedes de fazendas espalhadas pelos municípios mineiros, mediante publicação de edital[10].

Os jornais ora tentavam aplacar os ânimos, desmentindo boatos sobre a presença da doença, ora alertavam sobre seus perigos. Foi caso do Pharol, jornal de Juiz de Fora, que trazia regularmente notícias sobre a propagação da varíola na Zona da Mata Mineira, em províncias e mesmo no exterior.

No final do ano de 1878, por exemplo, instalou-se o pânico no município de Juiz de Fora com a possibilidade da ocorrência e propagação de casos de varíola. O pânico era justificado pelo fato de que anos antes, de setembro de 1874 a fevereiro de 1875, a cidade de Juiz de Fora foi assolada pela doença, que em seis meses infectou cerca de 1000 pessoas e matou 135.[11] A tragédia ainda estava bem vívida na memória dos juizforanos. O Pharol publicou uma série de notas de esclarecimento buscando desmentir estes boatos.

Em outubro de 1882, correu em Leopoldina a falsa notícia de um surto de varíola, provocado por ocorrências da doença em outras localidades, como Alfenas, Viçosa e Paraíba do Sul. No caso de Alfenas, a intensidade da epidemia foi tamanha, que a população teria se refugiado no campo, para fugir da doença[12]. Em 1895, a simples suspeita de um caso da doença fez com que fosse destacada uma junta médica para e a emissão de um parecer oficial desmentindo o boato da possível contaminação.

Podemos afirmar ao público para sei tranquilidade que o boato de que havia um caso de varíola na cidade não passou de suspeita.

Tratava-se de um doente de cataporas, moléstia fácil de confundir-se com a varíola.

Publicamos o atestado dos médicos oficiais que confirma o que acabamos de dizer. Eis o atestado:

Atestamos sub Médici fide et jure jurando que não existe caso algum de varíola nesta cidade. O fato suspeito que nos foi indicado na Grama, é um caso de cataporas, sem importância alguma.

Leopoldina, 11 de outubro de 1895.
Dr. Joaquim Antônio Dutra.
Dr Ernesto de La-Cerda.[13]

A publicação de laudos médicos confirmando ou não os casos da doença era prática comum nos jornais, tanto como forma de acalmar a população, quanto como forma de proceder à prevenção e convocar a população para a vacinação contra a moléstia. Negar e certificar a ausência da doença era também uma questão de ordem econômica. Quando boatos se espalhavam, o fluxo de pessoas no comércio local diminuía, muitos deixavam de ir trabalhar, fábricas fecham suas portas, ocasionando prejuízos tanto para os comerciantes quanto para o município.

As cidades da Zona da Mata eram consideradas mais vulneráveis à doença devido à proximidade com o Rio de Janeiro, cidade constantemente assolada por epidemias de varíola durante o Império e a República. Em 1883, a preocupação com a proximidade de Juiz de Fora da Corte, tomada pela doença é expressa no apelo que o jornal faz à Câmara Municipal, pedindo providências para evitar uma possível epidemia.

Jornais da corte dão como assustadoras as proporções que tem tomado a varíola no município neutro. O hospital de Jurujuba, completamente cheio, não dá mais lugar a doentes.

A vista disso não seria tempo de olharmos nós – um pouco para nós mesmos, e tomarmos providências com o fim de evitar a propagação do mal nessa cidade?

A continua em fácil comunicação com a corte põe a epidemia à nossas portas. À câmara municipal pedimos toda a atenção para o assunto. [14]

Em 1894 foram abertos editais para a vacinação contra a varíola, onde a população era convidada a se apresentar para receber a vacina no consultório do delegado de higiene, dr. Ernerto de La Cerda, realizada “todos os domingos (...) das 11 horas ao meio dia, à rua do Cotegipe.”[15] Mas a grande dificuldade estava justamente em vencer a resistência da população em receber a vacina. Além da falta de estrutura administrativa levou-se ainda muito tempo para se superar o medo da vacina. “Essa postura era avaliada pelas autoridades como decorrência da ignorância popular, que impelia a atitudes irracionais e absurdas, como a das mães da cidade de Leopoldina, que escondiam as filhas debaixo da cama para escapar à vacina”[16].

No município de Leopoldina, em 1895, foi registrado um caso na fazenda Sabiá, prontamente comunicado pelo delegado de higiene ao Agente Executivo. Foi liberada uma nota à população avisando que já haviam sido tomas todas as providências para que a doença fosse contida.[17] Cerca de um mês depois foi anunciada a vacinação contra varíola da população do distrito de Conceição da Boa Vista.[18]

Mais de três décadas depois a região ainda não havia superado o medo da doença. Em 1927 um dos documentos que deveria ser apresentado, por exemplo, para matrícula de meninas na Escola Normal do Colégio Imaculada Conceição era o atestado de vacinação contra a varíola.[19]

Em julho de 1933, a Gazeta de Leopoldina, noticiava o crescimento dos casos de varíola em Caratinga e Ubá. Em outubro do mesmo ano a doença chegou a Muriaé[20]. A população foi convocada a se apresentar aos postos de vacinação. A vacina era, inclusive, aplicada nas escolas e nas fábricas, onde havia maior aglomerado de pessoas.

Um dos fatores apontados para a propagação da doença, desde fins do século XIX, era o transporte ferroviário. A ferrovia, assim como as naus que traziam os escravos contaminados, transportava não apenas pessoas e mercadorias, mas, também, doenças como a varíola. Locais onde havia um intenso movimento ferroviário eram considerados sujeitos ao contágio.

Como já noticiou este jornal, há casos de varíola em um município mineiro, que, se não fica próximo do nosso, tem este constante ligação, por estrada de ferro e de rodagem, que significaria séria ameaça para nós, se não fosse à boa vontade com que a nossa população procura prevenir-se contra o mal se vacinando, numa exata compreensão da eficiência desse meio preventivo.[21]

Outro problema era a disponibilidade da vacina nos postos de higiene. Além de poucos, eles não tinha capacidade para atender a toda a população do município que, segundo o jornal, era de 65.677, em 1933. A quantidade de linfas não era suficiente para atender nem a um terço desse número.[22] Pediu-se providências à Diretoria Geral da Saúde Pública e a cidade recebeu novas remessas de vacina. O jornal destacou o aumento da procura pela vacina pela população. Ela é aplicada, também, nos distritos, por farmacêuticos credenciados[23].

A varíola foi a primeira doença infecciosa extinta por meio da vacinação, mas deixou um legado de morte, devastando populações inteiras em todo o mundo. Em Leopoldina, embora não tenhamos em mãos dados relativos a uma possível epidemia da doença, ela não é de todo descartada. O município viveu, desde o início da sua ocupação surtos de sarampo, tido como responsável pela morte de boa parte da população de índios puris, febre amarela e tantas outras doenças infecciosas cuja ação foi registrada no Rio de Janeiro, em Juiz de Fora e Cataguases.




[1] REZENDE, JM. À sombra do plátano: crônicas de história da medicina [online]. São Paulo: Editora Unifesp, 2009. Varíola: uma doença extinta. p .227. Disponível em: http://books.scielo.org/id/8kf92/pdf/rezende-9788561673635-24.pdf , acesso em 14 jul. 2017.
[2] CHALHOUB, Sidney. Cidade Febrik: cortiços e epidemias na corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 109-110.
[3] SILVEIRA, Anny Jackeline Torres, MARQUES, Rita de Cássia. Sobre a varíola e as práticas da vacinação em Minas Gerais (Brasil) no século XIX. vol. 16, no.2,  Rio de Janeiro fev. 2011, p. 388. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v16n2/v16n2a03.pdf, acesso em 11 jul. 2017
[4] REZENDE, JM. Op. Cit., p .227.
[5] SILVEIRA, Anny Jackeline Torres, MARQUES, Rita de Cássia . Op. Cit., p. 390.
[6] AMANTINO, Marcia. OS escravos fugitivos em Minas Gerais e os anúncios do Jornal “O Universal”- 1825 a 1832. Locus Revista de História, 2° proS3:59 S3:59, 2008, p. 71/72. Disponível em: https://locus.ufjf.emnuvens.com.br/locus/article/viewFile/2698/2102, acesso em 15 jul. 2017.
[7] REZENDE, JM. Op. Cit., p. 229.
[8] REZENDE, JM. Op. Cit., p.230.
[9] SILVEIRA, Anny Jackeline Torres, MARQUES, Rita de Cássia. Op. Cit. p. 390.
[10] Idem,  p. 391.
[11] SILVEIRA, Anny Jackeline Torres . Epidemias, estado e sociedade: Minas Gerais na segunda metade do século XIX, Dynamis 2011; 31 (1): 41-63 p.47.
[12] O Leopoldinense. Leopoldina, 07 de janeiro de 1882, ano IV, n. 02, p. 02.
[13] O Leopoldinense. Leopoldina, 13 de outubro de 1895, n. 70, ano XVI, p. 02.
[14] Pharol. Juiz de Fora, 10 de julho e 1883, ano XVII, n. 75 , p. 01
[15] O Leopoldinense. Leopoldina,04 de novembro de 1894, ano XV, n, 25, p. 03.
[16] SILVEIRA, Anny Jackeline Torres, MARQUES, Rita de Cássia. Op. Cit., p. 393.
[17] O Leopoldinense. Leopoldina, 03 de novembro de 1895, n. 73, ano XVI, p. 01.
[18] O Leopoldinense. Leopoldina, 01 dezembro de 1895, n. 77, ano XVI, p. 03.
[19] Gazeta de Leopoldina. Leopoldina, 13 de fevereiro de 1927, n. 21, na XXXII, p. 04.
[20] Gazeta de Leopoldina. Leopoldina, 8 de outubro de 1933, n. 138, ano XXXIX p. 01
[21] Gazeta de Leopoldina, 15 de julho de 1933ano XXXIX, n. 72,  p. 01.
[22] Gazeta de Leopoldina. Leopoldina, 27 de julho de 1933, n. 82, ano XXXIX p. 01.
[23] Gazeta de Leopoldina. Leopoldina, 30 de julho de 1933, n. 85, ano XXXIX p. 01

sábado, 15 de julho de 2017

VISITE A PÁGINA DO LIVRO "AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E A ESCOLA" NO FACEBOOK


Criei uma página no facebook para meu último livro, "As História em Quadrinhos e a Escola: práticas que ultrapassam fronteiras". Lá vou colocar notícias sobre ele, receber encomendas e quem quiser poderá deixar seus comentários. 

Para conferir é só clicar aqui!

segunda-feira, 10 de julho de 2017

1933 - COMO SURGIU A IDEIA DA PRIMEIRA EXPOSIÇÃO AGROPECUÁRIA DE LEOPOLDINA

Antigo parque de Exposições de Leopoldina.
A ideia da primeira Exposição Agropecuária e Industrial de Leopoldina nasceu em 1933, três anos antes da primeira exposição realizada pela Coopleste, que em 2017 está na sua 81ª edição. Foi uma iniciativa da Gazeta de Leopoldina, na época dirigida pelo Dr. José Monteiro Ribeiro Junqueira, empresário e político local.

Dentro do contexto vivido pelo Brasil, de crise da lavoura cafeeira, a ideia de uma exposição surge como uma forma de valorizar o produtor local e incentivar outros tipos de atividades agrícolas. Afinal, a diversificação das atividades econômicas era, naquele momento uma forma de minimizar os efeitos da queda vertiginosa dos preços do café e o fim do domínio político das oligarquias cafeeiras.  

Segundo a Gazeta de Leopoldina

“O lavrador Leopoldinense, na sua grande modéstia, honraria qualquer certame a que concorresse. É inteligente e trabalhador e os nossos campos feracíssimos. Produzimos de tudo e bom. Numa Exposição Leopoldinense, a seção de produtos agrícolas poderá ser uma verdadeira maravilha, o mesmo aconteceria com a nossa pecuária.[1]

Aliás, a “demasiada modéstia de seu povo” é considerada por Agostinho Marciano d’ Oliveira, bacharel de direito e técnico da lavoura, que cumprimenta a Gazeta pela ideia de exposição em nota publicada naquele jornal, a explicação para um município dos mais ricos permanecer na penumbra[2].

Segunda Gazeta, todos deveriam ser contemplados, do pequeno ao grande produtor. Mas o café, nesta época, ainda aparece em lugar de destaque.

"O nosso município produz, me média, 100.000 sacas de café e é preciso que se consiga pelo menos 30% de cafés "doces". Estamos certos de que o Departamento técnico fará também o seu mostruário facilitando o paralelo e o conhecimento da cor, aspecto e seca mais preferidos"[3]

É bom esclarecer que em meio à crise provocada pela quebra da bolsa de valores de Nova York, em 1929, a já abalada produção cafeeira foi duramente afetada. Mas nem produtores, nem o próprio governo, desistiram do café. Ele ainda era um produto importante e todo o esforço foi realizado para se salvar a produção. Tanto que até inícios dos anos de 1950 a lavoura cafeeira ainda resistia em Leopoldina.

A Gazeta fala de outras culturas, como o milho "o mais popular e indispensável dos nossos cereais,"[4] e que aparece com sendo um dos produtos mais exportados pelo município. Fala-se ainda do arroz, do feijão, da cana, da mandioca, usada na fabricação de polvilho e da produção de fumo, com destaque par ao município de Tebas.

"Ao distrito de Tebas caberá papel importante, expondo o seu famoso fumo, quer preparado, quer em suas belíssimas folhas, assim como mel que se extrai desse fumo, destinado a ser um dos mais belos inseticidas.[5]"

A matéria ainda enaltece a prática da horticultura, da citricultura e pecuária. A Gazeta fala ainda das "promissoras indústrias" locais.  A economia Leopoldinense é enaltecida e há um discurso otimista com relação ao seu crescimento e desenvolvimento. De fato, este discurso é corrente na época e serve como norte para que os municípios possam estabelecer estratégias para minimizar os efeitos da crise dos anos de 1930. Afinal, segundo a Gazeta de Leopoldina, “nosso município é apontado como terra de ordem, da paz e do trabalho”[6]


[1] GAZETA DE Leopoldina. Leopoldina, 20 de julho de 1933, ano XXXIX,  n. 76, p. 01
[2] GAZETA DE Leopoldina. Leopoldina, 19 de julho de 1933, ano XXXIX , n. 75, p. 01
[3] GAZETA DE Leopoldina. Leopoldina, 22 de julho de 1933, ano XXXIX , n. 78, p. 01.
[4] Idem.
[5] Idem.
[6] GAZETA DE Leopoldina. Leopoldina, 20 de julho de 1933, ano XXXIX,  n. 76, p. 01